Conto “Tal qual”, em Mix Cultural

Foto: Wilson Monticelli

Foto: Wilson Monticelli

Era como se lêssemos os pensamentos um do outro, o orgulho dele era adivinhar o que eu pediria do cardápio, e quando dizia algo errado, dizia com tanta firmeza que me deixava na dúvida se não era realmente aquele meu desejo. Desde que mamãe se fora, fazia de tudo por mim, nunca deixou faltar nada e se culpava todos os dias pela falta dela.

Quando ainda criança, ele me levava todos os sábados ao parque, aos domingos íamos visitar vovó e vovô, a menos quando chovia. Muitas vezes eu gostava mais, porque alugávamos filmes e no final do dia tinha pipoca em todos os cantos do apartamento. Até o momento de varrer as migalhas era gostoso.

Não faltava em uma reunião de pai, sequer: sempre o primeiro a chegar e o último a sair. Reforçava a cada vez com a professora que se eu começasse a dar trabalho, que chamasse a psicóloga da escola, pois podia ser a falta da mãe, a cruel e maldosa falta da mãe. Mal sabia ele que essa falta doía mais nele do que em mim.

Nem cheguei a conhecer essa mulher de quem tanto  ele fala; vovó que me contou que ela morreu depois de me amamentar, ainda no hospital. Vi fotos, filmes… Mas não sentia por ela o que sinto por ele, que primeiro fazia meu lanchinho, depois a marmita e por último, o nó da gravata. Quando depois de algumas namoradinhas achei alguém com quem queria compartilhar da vida, ele se aquietou.

No dia do meu casamento, lá estava ele no altar, de fraque como eu, cravo branco na lapela, fez questão de entrar comigo, de mãos dadas. Assim que o padre disse as últimas palavras, ouvi um suspiro ao fundo e em seguida ele desfaleceu. Assim como mamãe, se foi quando sentiu que havia cumprido a missão, e nem pôde esperar para ver, meses depois, nos olhos do neto, o brilho que carregava em si mesmo.

** Conto originalmente publicado em Mix Cultural  **

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