Conto “Porque aqui não tem natal”, em Coletivo Claraboia

Só no Natal é que a menina sentia esperança de algo mudar em seu destino. Não pelos presentes cretinos que recebia de pessoas que nunca mais voltariam ao abrigo, mas pelo espírito que sentia rondar a cidade, pelos bons fluídos que ela sequer sabia de onde vinham – nem mesmo se eram uma ilusão de seus sonhos. Ela chegou a desconfiar dos filmes típicos a que assistia, mudos, pela vitrines das lojas de móveis do bairro, pensou que pudesse se deixar levar pelos comerciais de famílias felizes com mesas fartas de perus, tenders e chesters, janelas cintilantes enfeitadas de verde, vermelho e dourado, luzes iluminando os caminhos do famoso bom velhinho; mas tudo isso só levava seus pensamentos a uma única pergunta: porque ela? Vida ingrata, pensava ela, se dizem por aí que só preto que se ferra, por que eu que sou branca também me ferro? Não gostava nem um pouco da vida que levava, do entra e sai de criança, de gente que procurava por cor de cabelo e de olhos como quem procura roupa  em loja, e ela sempre ficando. Tinha raiva, até. E a raiva se alimentava por todos os outros dias do ano em que não recebia mais do que um prato de arroz, ovo e farinha. E daí que ela gostava de farinha? Escutava na escola que salada era bom pra saúde, mas a barriga só recebia uma folha desbotada de alface nos finais de semana em que a dona do abrigo aparecia com algumas visitas importantes.

Acontece que ela estava cansada. Cansada de comer farinha almoço e janta, cansada de ser produto, cansada de nunca ser escolhida, cansada de enfeites, de tevês mudas, de visitas. Tirou de debaixo do colchão uns recortes de jornal de reportagens de pessoas e lugares importantes, guardou no bolso, na cozinha pegou um pão e saiu para fazer a vida que queria.

**Publicado em 16/12/14, originalmente em Coletivo Claraboia. Acesse mais posts aqui **